Autor: Gustavo Aranha

  • #0041 Quando a qualidade supera a quantidade?

    #0041 Quando a qualidade supera a quantidade?

    A crônica de hoje é um pouco diferente, ela é uma reflexão sobre o ato de escrever crônicas e como isso pode nos conectar.

    Não sei se você já ouviu falar da teoria de que seriam necessárias dez mil horas para se tornar expert em determinada habilidade. Essa ideia ficou muito famosa quando o autor Malcolm Gladwell publicou o livro “Fora de série – Outliers: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não”. Neste livro, ele aborda alguns casos de sucesso, tentando responder às perguntas: por que existem pessoas que se tornam excepcionais em algo e outras não?

    O livro foi publicado em 2008 e entrou no imaginário popular ao trazer um número mágico: seriam necessárias dez mil horas de dedicação a uma determinada habilidade para se tornar excepcional. Um de seus casos de estudo é o próprio Bill Gates, que, quando teve a oportunidade de fechar um contrato milionário com a gigante IBM, já teria acumulado dez mil horas de estudo em programação. Algo que fica de fora é o fato de que Bill Gates possuía contatos que qualquer outra pessoa naquela posição provavelmente não teria, o que foi fundamental para concretizar a venda.

    De toda a forma, o autor não explica como seriam essas práticas; parece que, ao fazer dez mil horas de algo, você simplesmente se torna um gênio naquilo. Mas será verdade? Quantas horas você dirigiu? Será que você se tornou uma pilota?

    Outro autor interessante para entendermos, de fato, a expertise em determinado assunto é Anders Ericsson. Ele foi o psicólogo responsável pelos estudos originais citados no livro de Gladwell e, ao lermos sua obra “Direto ao Ponto: Os Segredos da Nova Ciência da Expertise”, percebemos que ele relata seu estudo e como ele foi usado parcialmente para justificar a teoria das dez mil horas.

    Não é necessário você acumular dez mil horas, ao mesmo tempo que são exigidas muito mais horas para outras habilidades. Ele nos fala sobre a prática deliberada, que é uma prática na qual você necessita de feedback; não adianta nada você começar a fazer algo se você não errar e aprender com os seus erros, pois é assim que se evolui.

    Ele também cita que, para essa prática ser efetiva, é preciso sair da sua zona de conforto, crescer e sentir dor. Pense na musculação, você pode começar a treinar, mas isso não significa que se tornará um fisiculturista. No entanto, é possível aprimorar sua prática de treino, o que pode causar desconforto — não uma lesão, mas dor. Se você tiver um treinador que o corrija, aprenderá e se tornará cada vez melhor. Por outro lado, se você apenas treina sem prestar atenção ou se desafiar, não evolui nem aprimora sua prática, e isso não contribui para seus aprendizados.

    São quatro pilares definidos por ele: sair da zona de conforto, possuir metas claras e objetivas, foco total na atividade, feedback imediato e construtivo. É tudo que um treinador forneceria, então, para ele, é fundamental que tenhamos professores que nos treinem para que possamos desenvolver a nossa prática.

    Será que isso vale para as artes? É ingênuo pensar que os artistas não leem críticas, não submetem sua arte para receber um feedback de alguém de confiança. A arte também exige prática deliberada, é claro; nada é 100%. Mas, quando analisamos a biografia de grandes artistas, vemos pontos em comum. Embora nada disso seja garantia de sucesso, digamos assim.

    Isso é algo importante sobre o qual tenho refletido, além, é claro, de a vida ter me dado minhas primeiras leitoras e leitores: Kamylla, minha esposa, Evelyn, Letícia, Kamilla, Décio e Ateam. É uma honra saber que vocês leem meus textos. Esse é o primeiro passo de um grande sonho: construir, texto por texto, uma obra literária.

    E esse ousado sonho, num mundo capitalista, exige muito: exige também cautela, exige longo prazo. Você não melhora seus textos do nada; é preciso estudo, dedicação, constância. Mas eu preciso não me lesionar: não adianta escrever muito e ficar anos sem tocar nas palavras. Portanto, necessito ser humilde e perceber que é impossível manter a frequência de duas vezes por semana, na qualidade que desejo. Pensei também em meus queridos leitores: às vezes, menos é muito mais.

    Nos vemos sempre aos sábados, às 10h14.

  • #0039 Em busca do inútil

    #0039 Em busca do inútil

    Vivemos em busca de fazer algo para…

    Quero que aqui você leia um texto que seja completo nele mesmo.

    E se ele não é para algo, ele é inútil.

    Para ser completamente justo, essa é uma definição do Clóvis de Barros Filho no livro “Felicidade é inútil”. Seu argumento é que a felicidade é a causa final. Por exemplo, você trabalha para ter dinheiro para desfrutar com sua família, viver feliz, mas quando você vive feliz, não busca outra coisa. É como se essa causa fosse uma causa final.

    Eu vejo a arte como ele vê a felicidade.

    A arte é uma causa final.

    E isso me causa um conflito, pois se de um lado tenho esse conceito de arte muito claro, e de onde desejo posicionar os meus textos, do outro tenho que escrevo também para ser lido. Como equilibrar esses dois lados?

    Se meus textos hoje não são lidos por ninguém, além da minha esposa que me ama, então talvez exista nisso um indício de que há algo errado, que eu devesse melhorar. Provavelmente estou longe de conseguir escrever essa causa final de um texto, um texto completo por ele mesmo.

    Por outro lado, tenho exemplos de grandes escritores e escritoras que foram ignorados em vida. Mas estavam escrevendo aquilo que precisavam. E aquele texto, ignorado por seus contemporâneos, hoje me perpassa como uma lança e agrega sentido à minha vida.

    Mas não desejamos falar com a morte.

    Tenho lutado para encontrar um equilíbrio entre minha autenticidade e a melhora da minha própria arte. Mas é um processo lento e gradual.

    Mas cada vez tenho mais clareza para onde desejo ir, e consequentemente meus textos, sei que eles merecem o meu melhor e minha constância.

    E dessa vez não vou me sabotar. Nós nos sabotamos porque desejamos ter controle sobre a situação. Se eu parar de postar meus textos, tenho controle sobre eles. Tenho o conforto de acreditar ser um gênio que ainda será descoberto. Mas, quando coloco meus textos para o mundo, perco o controle; portanto, é preciso aceitar com humildade quando o problema é o texto e ter coragem de seguir a intuição de que, às vezes, o problema não é o texto. Se alguns escritores e escritoras reconhecidos postumamente, imagina quantos foram esquecidos? Nem aqueles que escreveram e foram lidos em vida têm garantia de serem lembrados; quiçá todos os outros.

  • #0038 O sentido não está no legado

    #0038 O sentido não está no legado

    Você já olhou para a sua vida e ficou se questionando se estava no caminho certo? Como se você ao encarar a sua vida não reconhece o local onde você está como parte de um sonho que você teve outrora? Você se reconhece como se fosse uma fraude, que tivesse traído a si mesmo ao não lutar por seus sonhos, mas que sonhos são estes?

    Todos nós, e eu me incluo nisso, temos o sonho de sermos destaques. Quando pensamos em mediocridade chega o nosso estômago se embrulha. Não desejamos ser mais apenas mais um Cadastro de Pessoa Física (CPF). Não. Desejamos mais, não é? Não disseram para nós em nossa infância que poderíamos ser qualquer coisa? Que seríamos diferente de nossos pais?

    Vieram então todos aqueles filmes da Sessão da Tarde em que o protagonista sofria bullying, era feio e apaixonado pela mocinha, no interior do país. Ele então consegue uma bolsa numa faculdade de ponta e se muda. Anos depois ele volta, agora com um corpo esbelto, um carro lindo, e muita inteligência. A mocinha ficou com o rei do baile da época, mas agora está disponível, solteira. E eles ficam juntos e felizes para sempre. Não desejamos então o destaque? Ser aquela pessoa especial que saiu do nada e deu a volta por cima? Mas e todos os outros que não são assim?

    No Brasil não é assim. Raramente você terá a oportunidade de ir para um outro estado ou país fazer uma graduação. Talvez você consiga até ter a oportunidade de estudar, apenas estudar. Se for como eu, começará a trabalhar logo após o Ensino Médio e essa será sua situação até morrer. Mas não é isso que sonhamos. Ou melhor, não é isso que colocam para nós como destaque. Isso é exatamente o que hoje você vai ler para sair, te venderão um novo curso milagroso que te ajudará a construir um negócio para você se destacar, se tornar milionário.

    Se todos se tornam milionários não há destaque em ser milionário. E de alguma forma, todos nós buscamos o destaque. Se nós não podemos nos destacar como o mais rico, então teremos alguma coisa para nos destacar. Eu tenho a skin escritor, nenhum dos meus amigos é escritor, eu sou escritor, há um destaque. Mesmo que eu não seja melhor que a maioria dos escritores, e em outro ambiente eu seja apenas mais um escritor.

    Buscamos algum mérito para sermos destaques. Mas o que está por debaixo de nos tornarmos destaques? Não seria uma disfunção adulta dos brasileiros? Em nossos lares, a maioria das mulheres são mães solo. Há uma lenda, uma lenda de uma paternidade. Será que só queremos tapar a dor do abandono de nossos pais? Isso é papo para terapia, mas precisamos nos questionar, por que desejamos chegar ao topo? Qual é a glória que desejamos? É receber inveja de nossos amigos? Por que uma vida com o mínimo não é suficiente para nós?

    Mas então temos ainda um sonho. Temos algo que queima dentro da gente. Eu pelo menos sou assim, tenho um desejo que queima e arde de fazer algo memorável. Mas mais uma vez, será que é meu desejo de fato? Ou eu apenas estou reproduzindo dezenas de livros que li que diziam que uma vida memorável era uma vida com um legado. Qual o sentido de deixar um legado se você morrerá? Já defendi em outra crônica que não existe diferença entre uma vida cheia de significados e uma vida medíocre. Se esse desejo ardente vem do fundo de sua alma, como então realizá-lo?

    A única forma que conheço para a realização dos sonhos é essa que estou empregando, todos os dias lapidar um pouco. Mas para eu chegar aqui, eu não comecei do nada. Eu tive que me esforçar muito para entender que isso era algo que eu faria independente de ter resultado, independente de ser o melhor, independente de qualquer coisa. Escrever é algo que queima dentro de mim e precisa sair em palavras, mesmo que eu tenha pouco tempo para me dedicar, mesmo que eu talvez nunca me torne uma referência, mesmo que ninguém leia, mesmo que eu tome uma surra de uma IA, ainda assim, eu irei vir aqui todos os dias e vou escrever.

    Primeiro você realiza o seu sonho numa esfera privada e depois transborda esse sonho para o mundo. Não é como os vendedores de promessas fazem. Eu preciso fazer essa diferenciação entre vendedor de curso, e vendedor de promessa. O vendedor de promessa fará uma oferta para você que será imperdível, mas quando você executar tudo o que ele disser e não tiver resultado, ele colocará a culpa em você, porque talvez você não vibrou na frequência correta. O vendedor de curso, terá também uma promessa, mas terá conhecimento e ferramentas para você aplicar, e ele também vai te explicar, que depende de sorte, pois sempre há sorte envolvida.

    Te pergunto o que é que arde e pulsa dentro do seu coração, que você foge, como diabo foge da cruz, mas no final do dia você está lá trabalhando nisso? Se você me disser que não sabe o que é, talvez você esteja escutando muito ruído e não consegue ouvir a voz que vem da sua alma e diz o motivo da sua existência.

    Portanto, o sentido não está no legado, nem no destaque. Isso são glórias passageiras que não satisfazem o nosso ser. Há sentido na execução silenciosa que a alma pede. É nesse espaço, que é possível encontrar a sua própria verdade.

  • #0036 Você não vai chegar lá, e não importa o que você faça

    #0036 Você não vai chegar lá, e não importa o que você faça

    Você já sentiu como se fosse uma barata tonta? Em que não importasse o quão forte você conseguisse pular, a gravidade te empurra para baixo e seu corpo volta ao mesmo lugar, tão forte, que você até mesmo chega a cair?

    Escrevo de maneira apressada este texto, porque eu não cheguei lá. Se eu tivesse chegado te faria um texto mostrando tudo o que eu fiz para chegar lá, mesmo que eu não soubesse exatamente o que me fez chegar lá, porque aquilo que sabemos é uma gota, e o que ignoramos é o oceano inteiro, como muito bem colocado na série Dark (aliás, assista). O chegar lá é pessoal, cada um de nós carrega os nossos desejos. Eu por exemplo, desejava poder viver escrevendo meus textos, em meu apartamento, tomando meu café e dialogando com os meus leitores. Mas isso é chegar lá?

    Se chegar lá, então é realizar os desejos, então invariavelmente você não chegará, pois só conseguimos desejar aquilo que não temos, então é uma impossibilidade. Entende que quando realizamos um desejo ele deixa de existir? Tive tais reflexões lendo o livro do Clóvis de Barros Filho, “A felicidade é inútil”. Portanto, não chegará lá, pois antes de chegar, o objetivo desejado terá desaparecido, fazendo com que estejamos correndo sempre atrás das sombras.

    Contudo, tais definições são distantes. São conceitos. Talvez uma substância imaterial dos significados das palavras. Então te convido a entrar nos mitos contemporâneos para podermos materializar as impossibilidades de se alcançar o objetivo desejado, ainda o desejando. Estes mitos martelam em nossas cabeças, nos fazendo perseguir desejos, que nem ao menos são nossos. Então sofremos como se fosse uma dupla punição: não conhecer os nossos desejos, e condicionar a felicidade a realização de desejos.

    Daniel Kaleman, nobel de Economia em 2002, no livro “Rápido e Devagar” traz um conceito interessante sobre dois sistemas que existem dentro de nós, chamando-os de: sistema 1 e sistema 2, bastante criativo. O primeiro seria aquele cérebro mais animalesco, o mesmo cérebro de nossos ancestrais, poderíamos dizer, um cérebro primitivo. Já o segundo é fruto de milhares de anos de evolução e diferenciação, e que seria o nosso cérebro humano, poderoso e racional. O primeiro estaria para uma intuição e o segundo para um raciocínio. Você talvez já esteja ligando os pontos, o segundo, por ser mais sofisticado, gasta muito mais energia, então tendemos a tomar quase todas nossas decisões usando os circuitos do sistema 1. Nós acreditamos, no entanto, que a maioria de nossas decisões vem de maneira racional e calculada, ou seja, sistema 2. E a verdade dura que nos esmaga é que não.

    Por exemplo, eu e minha esposa acabamos de comprar um apartamento. Uma decisão que envolve um financiamento de 35 anos, e nós estamos dizendo que tomamos uma decisão racional, mas até que ponto não fomos influenciados pelos Outdoors colocados em toda esquina da cidade? Após sermos bombardeados por essa bem sucedida campanha de marketing, decidimos fazer uma visita no estande decorado, que era lindíssimo. Esta visita nos conquistou, e fomos também afetados pelo gatilho da escassez, pois no dia anterior tinham vendido mais de 130 apartamentos. Reservamos, porém, planilhamos depois para ver se cabia em nosso orçamento.
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    Minha esposa, que costuma ver todas as opções de uma loja quando vai comprar uma nova roupa, decidiu junto comigo,em apenas uma visita, comprar um apartamento na planta. E eu, que vejo milhares de reviews e vídeos sobre qualquer produto que vou comprar, decidi comprar na planta um apartamento após uma única visita. Claro, que depois fizemos o nosso dever de casa, fizemos diversas buscas tentando entender se aquela era uma decisão acertada. Mas ele é lindo, então talvez não importasse tanto, talvez tais buscas fossem apenas uma justificativa do sistema 2 para satisfazer o sistema 1 de que tomamos a melhor decisão.

    Daniel Kaleman nos contextualiza esse comportamento como o efeito halo, para nos ajudar a entender, ele cita um exemplo do seu caso de avaliação das provas dos seus alunos. Ele percebeu que a primeira nota que ele fornecia aos alunos influenciava as notas das outras questões. Quando um aluno ia bem na primeira, ele tendia a avaliar bem todas as outras. Era como se ele desse uma voz de confiança para o aluno, se o aluno acertou o primeiro item era claro que ele saberia os outros. Só que isso não é verdade, um aluno poderia acertar a primeira questão e não saber as demais, e outro poderia errar a primeira e ir bem nas demais. Contudo, da forma como ele fazia, acabava que a primeira questão tinha um peso desproporcional, valendo muito mais, enquanto ele dizia aos alunos que todas as questões tinham o mesmo peso.

    Para tentar conter esses erros, ele começou a avaliar a primeira questão de todos os alunos juntos e escrevendo o resultado no lado oposto da página. Quando ele ia avaliar a segunda questão, e o aluno tinha ido mal, ele sentia uma dor de verdade em colocar a nota ruim no verso. Esse é o efeito, se vemos algo positivo, tendemos a continuar vendo algo positivo, se vemos algo negativo tendemos a continuar vendo algo negativo. Então se eu e minha esposa já tínhamos decidido comprar, a chance era muito grande de buscarmos justificativas para mostrar como nós fomos espertos e inteligentes efetuando a compra desse apartamento na planta.

    Na década de 1950, o psicólogo Leon Festinger realizou uma célebre investigação que fundamentou sua teoria da dissonância cognitiva. Juntamente com sua equipe, ele se infiltrou em um culto que anunciava o fim do mundo através de uma grande inundação, garantindo aos seus seguidores que seriam salvos por uma nave espacial. Em preparação, muitos adeptos abandonaram seus empregos e doaram seus bens materiais. Quando a profecia falhou e o evento catastrófico não se concretizou, Festinger testemunhou um resultado notável: ao invés de descartarem suas convicções, os membros mais dedicados — aqueles que mais haviam sacrificado — encontraram uma nova justificação para o ocorrido, convencendo-se de que a sua própria fé havia impedido a destruição do planeta. Essa forte necessidade de harmonizar suas ações e crenças com a realidade contraditória ilustrou de forma emblemática a dissonância cognitiva: uma tensão psicológica que impulsiona os indivíduos a alterarem suas percepções para reduzir o conflito entre o que acreditam e o que de fato acontece.

    Entende o quanto eu e minha esposa estávamos contaminados? Era como se tudo que encontrássemos a partir desse ponto servisse somente para realizarmos o desejo de estarmos certos. O desejo de chegar lá. O desejo de um destaque que será que era nosso mesmo? Será que desejávamos de fato morar num prédio novo e lindo? Chamarei esse chegar lá, de chegar lá coletivo. Quando realizamos um chegar lá coletivo é como se nós recebêssemos um carimbo com a informação: “Essa pessoa chegou lá, ela é especial”. E bem, esse é um dos nossos maiores desejos, nos destacarmos ao ponto de sermos especiais.

    Nós vivemos em um sistema piramidal e é impossível que todos se destaquem. Se todos se destacaram, então ninguém se destaca, já falei sobre isso na crônica “#0034 Ninguém é especial porque todos são especiais”. Voltando para a compra do nosso apartamento, até que ponto, nós também não o compramos para conquistar o lugar em meio as pessoas que amamos? Afinal é o esperado para nós, próximos aos trinta, trabalhar, consumir e procriar.

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    Não quero que você ache que estou ácido, pois não estou. Também não desejo que ache que nós não estamos fazendo uma escolha consciente, mas temos a plena consciência que nossas decisões não são apenas nossas. Praticamente qualquer decisão é conjunta, embora apenas nós receberemos as consequências dessas ações. Sei que não é justo, mas é assim que o mundo funciona. Para tomarmos uma decisão inteiramente individual, teríamos que sermos algum Deus que cria um mundo inteiro.

    E o que tudo isso tem a ver com o chegar lá? O chegar lá é coletivo. Você pode ter sua vida da forma como você sempre sonhou, você não terá chegado lá; não se chega lá individualmente. Algo que você pode observar é o desejo da riqueza. Você pode até dizer: não, Aranha, não quero ser rico, quero apenas uma vida confortável e os direitos mínimos da nossa constituição. Mas você deseja viajar, conhecer o mundo, comer bem, nos mais variados restaurantes, e claro, ter acesso a bons profissionais de saúde. Sei que você não associa isso a riqueza, mas a direitos básicos. Contudo, para tudo isso existir, é necessário produção, talvez produção em massa, e isso é caro, se é caro é uma riqueza.

    E sejamos sincero, não desejamos viajar por viajar. Se fosse assim, não existiriam canais de viagem. Desejamos também o destaque, é como se fosse um carimbo de: “nossa, olha como eles viajam”. Nós desejamos carimbar isso em nossa história para nos diferenciarmos. E eu não sou diferente disso, e muito menos tenho a solução para isso. Eu também escrevo para descobrir aquilo em que eu realmente sou único, diferente, destacado.

    E essa forma que somos feitos nos torna vulneráveis para sermos vítimas do marketing que nos rodeia. Obviamente, o marketing é um conjunto de técnicas que tem como finalidade fazer a junção da oferta com a demanda, o marketing sozinho não é Voldemort. Mas observe que quando cavamos nossas emoções nós chegamos a pilares fundamentais como: alegria, tristeza, medo, nojo, surpresa. Existem substâncias que nos fazem humanos. O que nos diferencia de outros animais. E que nos faz mais parecidos do que gostaríamos. Será que nossas diferenças não são apenas limitações de nossos sentidos que nos impedem de ver o quanto somos iguais, humanos?

    Um desses pilares é a própria felicidade, que muitas vezes associamos com o amor. Então aparece aquele guru que fala que você é especial, que você pode ter uma vida única sem dor, que para isso basta acabarmos com o capitalismo, ou comprar o curso dele que vai te ensinar a ser rico. Mas ele diz também que a culpa não é sua. A culpa é da escola, ou qualquer outro vilão. Segundo eles, a escola falha, escraviza a sua mente e te impede de se libertar. E os outros que não concordam com ele? Bem, os outros não concordam porque não estudaram o suficiente. E tudo isso tem problema? Tem. Observe o início do texto, só não faço mais textos porque preciso pagar as contas, e vivemos num país desigual em que ler é um ato de privilégio, e é um absurdo isso.

    E claro, que parte da promessa seja de gurus, seja de autoridades super inteligentes é o destaque. Eles prometem destaque e um mundo sem dor. Não há como não ter dor. Existir nesse mundo de matéria é um ato de superar a dor.

    Mas eu trago a boa nova, não é necessário que todos se destaquem para que você se sinta amado. Feliz. Nem ser rico. Nem superar esse sistema (mesmo que não possamos parar de lutar, em nenhum momento, para superar esse sistema). Nada disso. Não nos falta exemplo de grandes personalidades que depois que chegaram no tão sonhado lugar, perderam a própria vida para o vício em substâncias que as retiravam do mundo material.

    Não faltam.

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    Então o que precisamos fazer? Sei que procuramos a resposta e não perguntas. Mas você se conhece? Como diria Sócrates, primeiro conhece-te a ti mesmo. Algo que me ajuda é escrever. Escrever minhas memórias todos os dias começou a clarear o que é meu, o que é social e o mais importante: aquilo que não desejo, que não quero, que não é meu. Eu utilizo o Obsidian, que já tem função nativa para gerar notas diárias. Mas não faltam aplicativos, e para fazer isso, um caderno te atende. O importante é que você possa parar e se questionar sobre quem você é, e sobre a direção que a vida percorre.

    Nossa maior certeza é que nossa vida nesse plano é finita. Nós vamos morrer. Se vamos morrer, talvez o caminho não seja competição por destaque, nela só há espaço para poucos ganhadores, e todo o resto são perdedores. Talvez, somente talvez, possamos substituir o destaque por amor.

    Amar alguém é um ato infinito e somente um infinito pode ocupar o infinito que é um ser humano. E para o amor, não precisamos ser destaques, não precisamos de méritos, não precisamos de nada além de sermos nós mesmos.

    PS: Uma observação do Gustavo do futuro, depois de escrever esse texto, sobre decisões, desejos nossos e o tal do chegar lá, observamos que nosso sonho não era exatamente um apartamento novo, com um condomínio completo e todas aquelas coisas que nos enchem os olhos, não. Desejávamos apenas morar num apartamento bem arrumado e equipado. Então, meus amigos, vamos encarar uma grande reforma.

  • #0037 Eu quero ler a história dos que não deram certo

    #0037 Eu quero ler a história dos que não deram certo

    Nós nos deparamos o tempo todo com histórias de sucesso. Aquela pessoa fantástica que venceu um concurso, correu atrás de seus sonhos e deu certo.

    Mas e todos aqueles que tentaram e não conseguiram? Não estou falando dos que talvez não tivessem obstinação para ser artista. Falo dos que deram a vida para fazer a arte como se fossem escravos dessa decisão. É como se eles não tivessem tido escolha, e precisavam fazer aquilo para sobreviver. Falo deles. De todos eles que mesmo assim não foram o suficiente, foram enterrados, foram esquecidos.

    Por exemplo, conheço o trabalho dessas duas grandes escritoras: Maria Firmino dos Reis e Maria Carolina de Jesus. Elas são geniais, mas é provável que você nunca tenha ouvido falar delas. Mas a obra delas, se você as ler um dia, não vai mais esquecer.

    Maria Carolina de Jesus era uma catadora de lixo, quando um repórter foi fazer uma matéria e a encontrou junto aos seus diários. Ele, como um bom marketeiro, fez um grande lançamento, transformando num grande lixão, e fetichizando a pobreza e a falta de acesso a recursos mínimos.

    Sendo positiva ou negativa esta ação, a consequência foi que o livro caiu no gosto da elite da época e se tornou um best-seller. A elite queria conhecer a história da favelada que largou tudo pelo sonho de ser escritora. Mas depois disso, deste sucesso inicial, ela ficou restrita a um ambiente acadêmico e você nem deve conhecê-la.

    Já Maria Firmino dos Reis viveu num século em que a escravização de seres humanos era legal, no nosso país. Mas ela, mesmo sendo uma mulher negra, era livre, não apenas da escravização, como também de homens. Era professora de uma das primeiras escolas públicas do Brasil, sim, uma servidora do Estado.

    Ela, além de ter publicado o primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil, deve ter feito tanto por seus iguais, mas não temos acesso, não sabemos. Sua obra é incrível, sem dúvidas, uma das melhores do romantismo brasileiro. Mas por razões estruturais, caiu no esquecimento, sendo seu livro, por acaso, achado num sebo nos anos 1960, e graças a isso, podemos resgatar a sua memória.

    Eu queria mais histórias dessas pessoas. Qual a vida depois de fracassar em seus sonhos? Sei o que sentem alguns, por eles terem escrito sobre sua vida, como Fernando Pessoa e Maria Carolina de Jesus, para eles a arte era maior que a própria glória.

    Mesmo sem glória, recursos ou qualquer benefício em escrever: eu escrevo. E eu pergunto a você, qual é o fracasso em sua vida que você faria mesmo que não fizesse nenhum sentido?

  • #0035 Por que Deus uniu uma mão de vaca e um endividado?

    #0035 Por que Deus uniu uma mão de vaca e um endividado?

    Você já sentiu como se você não pudesse ver os frutos do seu trabalho?

    Este ano completou 12 anos que trabalho dia após dia. E no momento que eu escrevo esse texto, eu não tenho um centavo guardado no banco, mais que isso, se juntar todos os empréstimos que eu devo são mais de 150 mil reais.

    Neste tempo já foram 144 salários, e na maioria de todos esses meses as receitas foram menores que as despesas, o que fez com que as dívidas só aumentassem.

    Eu tenho certeza absoluta que você se identificou com essa história. Talvez você não deva tanto capital, mas tenho certeza que tem alguma parcela.

    E eu me pergunto todos os dias: para onde foi esse dinheiro? Eu sou uma pessoa relativamente simples, e desde o meu terceiro mês de emprego eu já devo, desde aquela época as parcelas de empréstimos já sugam mais de 50% do meu rendimento líquido.

    E sim, hábitos simples e com poucos gastos, mesmo assim o dinheiro foi embora. E nós, não somos apenas o que somos, nós também somos a expectativa dos que nos amam sobre o que nós somos. E sei que existia uma expectativa de que isso fosse diferente.

    Saber que você rompeu isso, é devastador. Sinto exatamente os mesmos pensamentos daqueles que cometem suicídio por terem perdido uma parte da vida com aquilo que eles não queriam, por terem sido pegos em momentos vulneráveis.

    Como justificativa para mim, para conseguir me olhar no espelho, eu mentia para mim mesmo dizendo que eu fiz isso também para ajudar os outros. Para ajudar minha família, para doar. Mas a verdade é que é dolorosa demais, tão dolorosa que demorei 12 anos para conseguir escrevê-la; é que fiz isso porque não consegui dizer não.

    Dizer não para o fácil. Dizer não para tudo aquilo que me venderam, mas eu não queria comprar. Dizer não para o sistema que eu nunca acreditei que ia me satisfazer, mas mesmo assim eu acreditei e coloquei minha alma nele. Dizer não para a minha família.

    Por outro lado, Deus proporcionou uma união inusitada. A minha esposa é o meu oposto neste sentido. Quando começamos a nos relacionar, ela tinha 10 mil no banco, enquanto eu, que ganhava 8 vezes mais que ela, não tinha nada.

    Enquanto eu dizia sim para tudo. Ela se controlava. Ela tinha medo da ausência e sempre poupava uma parte de seus rendimentos. Eu, sempre aumentando meus empréstimos, pois já estava acostumado a viver uma vida que não era minha, enquanto os dígitos da dívida aumentavam.

    Cada dia que se passa eu aprendo mais com ela. Você não pode tirar o seu sono, sua vida, para ajudar, só porque você ganha mais e deveria ter aquele dinheiro, se você não tem. De que adianta tantas ajudas, se essa dívida me tira o sono? Minha paz? Minha vida?

    Enquanto ela conseguiu aprender comigo sobre generosidade. Conseguir partilhar até aquilo que não tem. Mas não sei se eu sou generoso de verdade, ou se essa generosidade é só mais uma camada para eu não encarar as minhas próprias fraquezas.

    Essa seria a hora que eu daria uma solução, mas não existe solução mágica, é reduzir os custos e pagar; demorei 12 anos para conseguir uma dívida monstra assim. Talvez eu demore mais 12 anos para pagar.

    Você tem dívidas, ou é do clube dos poupadores?

  • #0034 Ninguém é especial porque todos são especiais

    #0034 Ninguém é especial porque todos são especiais

    Quando se anda de moto, é como se você sempre estivesse a um passo da morte, o que é estranho, se você parar e pensar que para morrermos basta que estejamos vivos.

    Então, pensar na morte se torna algo constante. Por isso, acho que faria bem, se pensássemos mais um pouquinho nela, afinal, talvez, seja a única certeza que todos temos, morreremos.

    E se hoje fosse o meu dia? Teria deixado algo que me orgulho?

    Minhas realizações diante de tudo são pífias. Só que uma realização extraordinária não é nada. Não importa. Como coloca muito bem, Clóvis de Barros Filho, em seu livro “A felicidade é inútil”. E o inútil pode ser tudo, menos extraordinário.

    Mas quando nos sentimos especiais, não dá um quentinho na barriga? Uma vontade molhadinha no peito coberto de glória; eu sei que você também sente. Mas logo passa. Alguns de nós desejam a fama, ser amado por multidões, mas como ser amado assim se para amar é preciso conhecer? Conhecer quem você é de fato. Vem então aquele medo de que se nos conhecessem de fato, ninguém nos amaria. E assim não seríamos especiais para ninguém.

    Nos esquecemos que existir nesse mundo é um singelo milagre. Na corrida dos espermatozoides vencemos. Somos especiais. Essa é a parte coaching do texto, todos são especiais e isso é uma verdade. Carregamos metade de nossas mães, e metade de nossos pais, somos eles, somos de partes deles, mas vivemos para nós, para o outro, para o mundo. Somos todos especiais, e isso é um paradoxo, pois se todos são especiais ninguém é especial.

    Então para não vivermos diante desse paradoxo, nós definimos e escolhemos algumas pessoas e significamos as realizações delas como extraordinárias. Sim, meu amigo. Não há nada extraordinário no mundo. Tudo é ordinário. O significado do extraordinário é construído por mim, por ti, por nós. Mas encarar isso é ver a nossa insignificância diante de um mundo de 14 bilhões de anos. É mais fácil pensar que existe entre nós verdadeiros gênios, salvadores, deuses. Lembramos disso constantemente.

    E acabamos esquecendo que nenhum ser humano produz algo sozinho, por isso nós somos seres sociáveis. Você pode contra-argumentar sobre uma produção artesanal, mas ele importou algum material, precisou comprar alimentos, precisou de ferramentas, e tudo isso foi a partir de outros humanos.

    Tudo o que construímos não vem do nada, veio da base de outros humanos. Muitos desses humanos não sabemos o nome, não tiveram o reconhecimento extraordinário que imaginamos que eles deveriam ter. Carl Sagan já dizia que se você quer fazer algo novo, precisa começar construindo um novo universo.

    Então, em algum grau o que a humanidade produz é humano, e cada ser humano conseguiu contribuir com algo para isso, cada um de nós. Cada ser humano ordinário contribuiu para as poucas realizações extraordinárias que a maior parte dos humanos usufrui.

    Nesta lógica, tudo que é extraordinário partiu do ordinário.

    Ser ordinário assim é algo a se orgulhar. Então, a resposta a pergunta seria, talvez nenhum legado, mas deixei tanto amor, que certamente, é um amor extraordinário.

    Chegará um dia que nem a Terra vai existir, e toda essa conversa que estamos tendo não fará nenhum sentido, será como se nunca tivesse existido.

    Mas algo de nós ainda existirá, nem que sejam os átomos que nos compõem, e quando isso acontecer, tudo voltará a ser ordinário.

  • #0033 Manual não oficial da vida perfeita

    #0033 Manual não oficial da vida perfeita

    Certa vez, contaram uma lenda para mim, disseram que se eu estudasse eu iria me tornar alguém na vida, e alguém na vida não era um cidadão honrável, não. Era simplesmente ter bens.

    Não me contaram que trabalhar todos os dias úteis da vida seria tão exaustivo. Não me contaram que todos os meus colegas teriam dores na lombar e eu ficaria me questionando quando seria a minha vez. Se esqueceram de dizer que todos só reclamariam do trabalho da minha equipe, e que os outros quereriam o melhor, mesmo pagando o suficiente apenas para uma sobre-existência.

    O manual que me passaram da vida dizia assim:
    – Estude e seja um dos melhores alunos da turma;
    – Passe numa universidade federal;
    – Passe num concurso;
    – Se case;
    – Tenha filhos;
    – Produza;
    – Morra;

    Esqueceram de colocar na fórmula como ser feliz em meio a tudo isso. Mas felizmente, eu tenho os livros, e os livros completaram o manual para a vida. Não é uma vida perfeita, mas é a vida que eu escolhi para mim e para a minha esposa.

    Nos livros descobri que eu poderia colocar sentido em tudo o que eu fizesse. Vivemos num mundo justo? Não. Mas para o mundo funcionar da forma como ele funciona é preciso produzir, então eu comecei a enxergar a produção como uma engrenagem, e ver que tudo era igual, eu estava contribuindo para a humanidade. Era o ideal? Não. Mas era o real.

    Aprendi que quanto mais eu produzisse, melhor, mas que a minha vida não poderia e nem deveria ser só vinculada a produção. Eu precisava de outras coisas. Esse é o aspecto da vida humana. E quando eu trabalhei só produzindo, sem levar em consideração os outros aspectos, todas as vezes, eu falhei. Travava e não conseguia mais escrever. Mas quando eu encontrava um equilíbrio eu conseguia escrever.

    E foi com os livros que pude começar a aprender a estudar. O senso comum diz que a educação é o caminho para ascensão, ligando-a a dinheiro e prestígio. Mas a vida real é muito maior e mais completa que isso. Não há garantia de nada na vida.

    E precisamos estudar, independente de tudo, tudo o que temos vem do estudo. Esta tela que você me lê existe graças ao estudo. Qualquer estudo bem aplicado resolve problemas e traz benefícios financeiros. Mas é só isso?

    O estudo nos leva a um nível que mais nada é capaz. É como se nos conectássemos a um espaço em que tantos outros humanos tiveram. É um lugar mágico. Um lugar não-linguagem, o que é isso? É um lugar que a linguagem não consegue captar, não consegue explicar. A linguagem é limitada. E esse lugar, é um lugar em que não existe a limitação da linguagem.

    E você estudava. Estudava para seguir aquele velho roteiro, para passar num concurso, para milhares de sonhos que certamente nem eram seus. E se você estudasse para poder se conhecer? O que te aconteceria? me mande uma mensagem, eu realmente gostaria de saber.

  • #0032 A capacidade única do ser humano

    #0032 A capacidade única do ser humano

    Esses dias eu estava observando meus gatos, o Machado, o macho, ele é muito esperto, somente com tentativa e erro, ele aprendeu a abrir a maçaneta da porta, entrar nos quartos, e perturbar o meu sono. Por outro lado, minha outra gata, a Bitita, não conseguiu aprender com a descoberta do Machado. É como se eles não conseguissem se comunicar.

    Já nós humanos aprendemos com a realidade, e não apenas isso: livros, músicas, paisagens, relacionamentos, inimigos, sei lá, aprendemos com qualquer coisa.

    Mas nós só aprendemos aquilo que queremos aprender.

    Imagine se você desejasse tanto ser policial, começar a ler romances de policiais, ficar tão imerso naquilo que um belo dia você se olha no espelho e vê a farda. Pega então uma faca e diz que é a sua pistola. Loucura, não é?

    Você então começa sair para a rua, procurando crimes para desvendar, inocentes para proteger, e bandidos e ladrões para prender.

    A realidade não está preparada para o seu novo nível de conhecimento. Você apanha. Todo mundo sabe que sua faca não é uma pistola, que sua roupa não é um uniforme. Que você não é um policial.

    Mas você acredita. Se todos dissessem que você não é um policial e esse fosse o seu sonho, você lutaria com unhas e dentes contra todos os outros?

    Sua família se preocupa com você, observa ver você chegando todos os dias, com diversos machucados, teimando e gritando que é um policial. Sua irmã descobre que você estava lendo diversos romances policiais, e ela tem certeza que a culpa é deles. Ela organiza uma fogueira e coloca fogo em tudo.

    Isso não seria censura? Os romances de policiais realmente causaram tanta loucura na sua cabeça? Você escutaria sua família? Sua irmã? Ou se revoltaria contra todos eles?

    Isso que narrei é a história do Dom Quixote, o fidalgo que lê tantos livros de cavalaria que se acha um cavaleiro.

    Ele não se importa com nada, tem completa certeza daquilo que estudou, e tudo é tão forte, que tem aquela clássica batalha contra os moinhos de vento, mas que na cabeça dele são gigantes.

    Ele se arrebenta todo, cai, mas continua, segue em frente, mesmo que tudo indique o contrário, ainda assim, ele acredita nas linhas que ele leu.

    É uma linha tênue de beleza de não desistir, e teimosia que te machuca.

    Hoje em dia não são mais os romances que influenciam as pessoas, vivemos então na era dos influencers, e talvez nunca antes na história houve tantos cavaleiros como existe hoje. Todos sentados no conforto de seus lares, com seus smartphones que são suas espadas, protegem suas ideologias e enfrentam diversos moinhos.

    Mas nós somos diferentes, não somos? Se você leu até aqui eu sei que somos, mas mesmo assim precisamos vigiar, e termos cuidado para não sermos cavaleiros.

  • #0031 Uma breve história da vida que você escolhe

    #0031 Uma breve história da vida que você escolhe

    Você se lembra da primeira vez que tomou uma decisão? Eu tinha por volta de 5 anos e tinha acabado de entrar no karatê, decidi que não queria mais voltar lá. Os alongamentos eram demasiadamente dolorosos, não queria aquilo para mim. Decidi isso no auge dos meus 5 anos.

    Não me recordo de ter desejado fazer esse esporte. Imagino que talvez fosse algo normal, os filhos aprendem a lutar enquanto as meninas bailavam. Felizmente para mim, a minha decisão aos 5 anos foi respeitada. E assim, não me tornei o garoto do karatê.
    PS. a consequência é que até hoje eu também não consigo fazer um bom alongamento.

    A decisão foi fácil, não queria sentir dor. Simples não é? E nesta época eu não tinha ainda uma consciência do eu. Até hoje não tenho ainda essa consciência, não há um dia que eu não me surpreenda com esse conceito.

    Essa falta de clareza faz com que seja difícil dizer não, tantas vezes quanto são necessárias. Nós deveríamos ter uma consciência melhor de nossos desejos e objetivos. Entender que realização de desejos não traz satisfação ou felicidade.

    Mas não. É como se, ao tomarmos consciência de nossa consciência (pois aos 5 anos a minha consciência era limitada como a qualquer criança), nós também recebêssemos a revelação de tudo aquilo que esperam da gente. E por nossa fragilidade, começamos a percorrer caminhos da expectativa para satisfazer o desejo daqueles que amamos.

    O preço é que cada pessoa cria um mini mundo em sua cabeça, então a satisfação decorrente de viver neste mini mundo é diferente para cada pessoa. E ao satisfazer a expectativa de outro alguém, por mais que amemos este alguém, nós nos ressentimos.

    Satisfazer o outro significa não satisfazer os nossos próprios desejos, afinal, é impossível existir duas pessoas iguais, ou seja, dois desejos iguais. E para não encararmos a dor de não nos frustrarmos, a gente ou quem amamos, caímos na ilusão de acreditar que podemos fazer os dois, quando na verdade não podemos. Fazer um significa não fazer o outro.

    Há vezes em que esses dois eus são tão parecidos que nos enganamos e até chamamos esses momentos de felicidade. Mas há vezes que eles são tão distantes que para nos encararmos no espelho precisamos de quilos de remédio.

    São tantas as vozes que com o tempo vamos deixando de saber quais daquelas vozes são realmente nossas. Com o tempo nos tornamos tão apáticos à vida que não temos mais ilusão de felicidade fora dos vícios. Não nos conhecemos e nem sabemos mais aquilo que gostamos. Porque a única realização que conhecemos é a concretização do desejo daquilo que esperam da gente.

    Mas não encaramos esse fato, não. Nós mentimos para nós. Dizemos assim: tenho tempo ainda de descobrir, sou novo. Tenho toda uma vida pela frente.

    Temos realmente tempo. Tempo este que nos ilude, nos faz acreditar que somos ou seremos eternos. Jovens, podemos escolher qualquer curso, não me interprete mal, você ainda pode fazer qualquer faculdade, mas nenhuma delas será como a primeira que você fez com seus vinte e poucos anos.

    E nós ignoramos que escolher é definir tudo aquilo que iremos desfrutar no sentido do ser. Precisamos nos libertar da ilusão de que podemos ser tudo. Pois para sermos algo primeiro precisamos deixar de ser a infinitude de outros algos que poderíamos ser.

    Este é o processo de se tornar adulto. Ser responsável pelo que você é. Não adianta chorar. Não adianta culpar o outro. Não adianta nada. O seu sofrimento, só você o sente.

    Você pode continuar ignorando isso, mas cada vez que adia escolher, algum outro escolhe por você. E você e as pessoas que são próximas a você, sim, aquelas que te amam, sofrem por sua ausência de escolha.

    Vale o lembrete: você não tem todo o tempo do mundo. Mesmo que você seja herdeiro e não trabalhe; mesmo que seu trabalho seja fácil; mesmo que você seja explorado ao extremo; mesmo que qualquer coisa, você não tem todo o tempo do mundo.

    E todo o tempo que temos é finito diante do infinito de possibilidades que é existir neste mundo cheio de matéria.

    Portanto, aprender a ser finito é aprender a ser livre de fato.