Você já sentiu como se fosse uma barata tonta? Em que não importasse o quão forte você conseguisse pular, a gravidade te empurra para baixo e seu corpo volta ao mesmo lugar, tão forte, que você até mesmo chega a cair?
Escrevo de maneira apressada este texto, porque eu não cheguei lá. Se eu tivesse chegado te faria um texto mostrando tudo o que eu fiz para chegar lá, mesmo que eu não soubesse exatamente o que me fez chegar lá, porque aquilo que sabemos é uma gota, e o que ignoramos é o oceano inteiro, como muito bem colocado na série Dark (aliás, assista). O chegar lá é pessoal, cada um de nós carrega os nossos desejos. Eu por exemplo, desejava poder viver escrevendo meus textos, em meu apartamento, tomando meu café e dialogando com os meus leitores. Mas isso é chegar lá?
Se chegar lá, então é realizar os desejos, então invariavelmente você não chegará, pois só conseguimos desejar aquilo que não temos, então é uma impossibilidade. Entende que quando realizamos um desejo ele deixa de existir? Tive tais reflexões lendo o livro do Clóvis de Barros Filho, “A felicidade é inútil”. Portanto, não chegará lá, pois antes de chegar, o objetivo desejado terá desaparecido, fazendo com que estejamos correndo sempre atrás das sombras.
Contudo, tais definições são distantes. São conceitos. Talvez uma substância imaterial dos significados das palavras. Então te convido a entrar nos mitos contemporâneos para podermos materializar as impossibilidades de se alcançar o objetivo desejado, ainda o desejando. Estes mitos martelam em nossas cabeças, nos fazendo perseguir desejos, que nem ao menos são nossos. Então sofremos como se fosse uma dupla punição: não conhecer os nossos desejos, e condicionar a felicidade a realização de desejos.
Daniel Kaleman, nobel de Economia em 2002, no livro “Rápido e Devagar” traz um conceito interessante sobre dois sistemas que existem dentro de nós, chamando-os de: sistema 1 e sistema 2, bastante criativo. O primeiro seria aquele cérebro mais animalesco, o mesmo cérebro de nossos ancestrais, poderíamos dizer, um cérebro primitivo. Já o segundo é fruto de milhares de anos de evolução e diferenciação, e que seria o nosso cérebro humano, poderoso e racional. O primeiro estaria para uma intuição e o segundo para um raciocínio. Você talvez já esteja ligando os pontos, o segundo, por ser mais sofisticado, gasta muito mais energia, então tendemos a tomar quase todas nossas decisões usando os circuitos do sistema 1. Nós acreditamos, no entanto, que a maioria de nossas decisões vem de maneira racional e calculada, ou seja, sistema 2. E a verdade dura que nos esmaga é que não.
Por exemplo, eu e minha esposa acabamos de comprar um apartamento. Uma decisão que envolve um financiamento de 35 anos, e nós estamos dizendo que tomamos uma decisão racional, mas até que ponto não fomos influenciados pelos Outdoors colocados em toda esquina da cidade? Após sermos bombardeados por essa bem sucedida campanha de marketing, decidimos fazer uma visita no estande decorado, que era lindíssimo. Esta visita nos conquistou, e fomos também afetados pelo gatilho da escassez, pois no dia anterior tinham vendido mais de 130 apartamentos. Reservamos, porém, planilhamos depois para ver se cabia em nosso orçamento.
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Minha esposa, que costuma ver todas as opções de uma loja quando vai comprar uma nova roupa, decidiu junto comigo,em apenas uma visita, comprar um apartamento na planta. E eu, que vejo milhares de reviews e vídeos sobre qualquer produto que vou comprar, decidi comprar na planta um apartamento após uma única visita. Claro, que depois fizemos o nosso dever de casa, fizemos diversas buscas tentando entender se aquela era uma decisão acertada. Mas ele é lindo, então talvez não importasse tanto, talvez tais buscas fossem apenas uma justificativa do sistema 2 para satisfazer o sistema 1 de que tomamos a melhor decisão.
Daniel Kaleman nos contextualiza esse comportamento como o efeito halo, para nos ajudar a entender, ele cita um exemplo do seu caso de avaliação das provas dos seus alunos. Ele percebeu que a primeira nota que ele fornecia aos alunos influenciava as notas das outras questões. Quando um aluno ia bem na primeira, ele tendia a avaliar bem todas as outras. Era como se ele desse uma voz de confiança para o aluno, se o aluno acertou o primeiro item era claro que ele saberia os outros. Só que isso não é verdade, um aluno poderia acertar a primeira questão e não saber as demais, e outro poderia errar a primeira e ir bem nas demais. Contudo, da forma como ele fazia, acabava que a primeira questão tinha um peso desproporcional, valendo muito mais, enquanto ele dizia aos alunos que todas as questões tinham o mesmo peso.
Para tentar conter esses erros, ele começou a avaliar a primeira questão de todos os alunos juntos e escrevendo o resultado no lado oposto da página. Quando ele ia avaliar a segunda questão, e o aluno tinha ido mal, ele sentia uma dor de verdade em colocar a nota ruim no verso. Esse é o efeito, se vemos algo positivo, tendemos a continuar vendo algo positivo, se vemos algo negativo tendemos a continuar vendo algo negativo. Então se eu e minha esposa já tínhamos decidido comprar, a chance era muito grande de buscarmos justificativas para mostrar como nós fomos espertos e inteligentes efetuando a compra desse apartamento na planta.
Na década de 1950, o psicólogo Leon Festinger realizou uma célebre investigação que fundamentou sua teoria da dissonância cognitiva. Juntamente com sua equipe, ele se infiltrou em um culto que anunciava o fim do mundo através de uma grande inundação, garantindo aos seus seguidores que seriam salvos por uma nave espacial. Em preparação, muitos adeptos abandonaram seus empregos e doaram seus bens materiais. Quando a profecia falhou e o evento catastrófico não se concretizou, Festinger testemunhou um resultado notável: ao invés de descartarem suas convicções, os membros mais dedicados — aqueles que mais haviam sacrificado — encontraram uma nova justificação para o ocorrido, convencendo-se de que a sua própria fé havia impedido a destruição do planeta. Essa forte necessidade de harmonizar suas ações e crenças com a realidade contraditória ilustrou de forma emblemática a dissonância cognitiva: uma tensão psicológica que impulsiona os indivíduos a alterarem suas percepções para reduzir o conflito entre o que acreditam e o que de fato acontece.
Entende o quanto eu e minha esposa estávamos contaminados? Era como se tudo que encontrássemos a partir desse ponto servisse somente para realizarmos o desejo de estarmos certos. O desejo de chegar lá. O desejo de um destaque que será que era nosso mesmo? Será que desejávamos de fato morar num prédio novo e lindo? Chamarei esse chegar lá, de chegar lá coletivo. Quando realizamos um chegar lá coletivo é como se nós recebêssemos um carimbo com a informação: “Essa pessoa chegou lá, ela é especial”. E bem, esse é um dos nossos maiores desejos, nos destacarmos ao ponto de sermos especiais.
Nós vivemos em um sistema piramidal e é impossível que todos se destaquem. Se todos se destacaram, então ninguém se destaca, já falei sobre isso na crônica “#0034 Ninguém é especial porque todos são especiais”. Voltando para a compra do nosso apartamento, até que ponto, nós também não o compramos para conquistar o lugar em meio as pessoas que amamos? Afinal é o esperado para nós, próximos aos trinta, trabalhar, consumir e procriar.
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Não quero que você ache que estou ácido, pois não estou. Também não desejo que ache que nós não estamos fazendo uma escolha consciente, mas temos a plena consciência que nossas decisões não são apenas nossas. Praticamente qualquer decisão é conjunta, embora apenas nós receberemos as consequências dessas ações. Sei que não é justo, mas é assim que o mundo funciona. Para tomarmos uma decisão inteiramente individual, teríamos que sermos algum Deus que cria um mundo inteiro.
E o que tudo isso tem a ver com o chegar lá? O chegar lá é coletivo. Você pode ter sua vida da forma como você sempre sonhou, você não terá chegado lá; não se chega lá individualmente. Algo que você pode observar é o desejo da riqueza. Você pode até dizer: não, Aranha, não quero ser rico, quero apenas uma vida confortável e os direitos mínimos da nossa constituição. Mas você deseja viajar, conhecer o mundo, comer bem, nos mais variados restaurantes, e claro, ter acesso a bons profissionais de saúde. Sei que você não associa isso a riqueza, mas a direitos básicos. Contudo, para tudo isso existir, é necessário produção, talvez produção em massa, e isso é caro, se é caro é uma riqueza.
E sejamos sincero, não desejamos viajar por viajar. Se fosse assim, não existiriam canais de viagem. Desejamos também o destaque, é como se fosse um carimbo de: “nossa, olha como eles viajam”. Nós desejamos carimbar isso em nossa história para nos diferenciarmos. E eu não sou diferente disso, e muito menos tenho a solução para isso. Eu também escrevo para descobrir aquilo em que eu realmente sou único, diferente, destacado.
E essa forma que somos feitos nos torna vulneráveis para sermos vítimas do marketing que nos rodeia. Obviamente, o marketing é um conjunto de técnicas que tem como finalidade fazer a junção da oferta com a demanda, o marketing sozinho não é Voldemort. Mas observe que quando cavamos nossas emoções nós chegamos a pilares fundamentais como: alegria, tristeza, medo, nojo, surpresa. Existem substâncias que nos fazem humanos. O que nos diferencia de outros animais. E que nos faz mais parecidos do que gostaríamos. Será que nossas diferenças não são apenas limitações de nossos sentidos que nos impedem de ver o quanto somos iguais, humanos?
Um desses pilares é a própria felicidade, que muitas vezes associamos com o amor. Então aparece aquele guru que fala que você é especial, que você pode ter uma vida única sem dor, que para isso basta acabarmos com o capitalismo, ou comprar o curso dele que vai te ensinar a ser rico. Mas ele diz também que a culpa não é sua. A culpa é da escola, ou qualquer outro vilão. Segundo eles, a escola falha, escraviza a sua mente e te impede de se libertar. E os outros que não concordam com ele? Bem, os outros não concordam porque não estudaram o suficiente. E tudo isso tem problema? Tem. Observe o início do texto, só não faço mais textos porque preciso pagar as contas, e vivemos num país desigual em que ler é um ato de privilégio, e é um absurdo isso.
E claro, que parte da promessa seja de gurus, seja de autoridades super inteligentes é o destaque. Eles prometem destaque e um mundo sem dor. Não há como não ter dor. Existir nesse mundo de matéria é um ato de superar a dor.
Mas eu trago a boa nova, não é necessário que todos se destaquem para que você se sinta amado. Feliz. Nem ser rico. Nem superar esse sistema (mesmo que não possamos parar de lutar, em nenhum momento, para superar esse sistema). Nada disso. Não nos falta exemplo de grandes personalidades que depois que chegaram no tão sonhado lugar, perderam a própria vida para o vício em substâncias que as retiravam do mundo material.
Não faltam.
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Então o que precisamos fazer? Sei que procuramos a resposta e não perguntas. Mas você se conhece? Como diria Sócrates, primeiro conhece-te a ti mesmo. Algo que me ajuda é escrever. Escrever minhas memórias todos os dias começou a clarear o que é meu, o que é social e o mais importante: aquilo que não desejo, que não quero, que não é meu. Eu utilizo o Obsidian, que já tem função nativa para gerar notas diárias. Mas não faltam aplicativos, e para fazer isso, um caderno te atende. O importante é que você possa parar e se questionar sobre quem você é, e sobre a direção que a vida percorre.
Nossa maior certeza é que nossa vida nesse plano é finita. Nós vamos morrer. Se vamos morrer, talvez o caminho não seja competição por destaque, nela só há espaço para poucos ganhadores, e todo o resto são perdedores. Talvez, somente talvez, possamos substituir o destaque por amor.
Amar alguém é um ato infinito e somente um infinito pode ocupar o infinito que é um ser humano. E para o amor, não precisamos ser destaques, não precisamos de méritos, não precisamos de nada além de sermos nós mesmos.
PS: Uma observação do Gustavo do futuro, depois de escrever esse texto, sobre decisões, desejos nossos e o tal do chegar lá, observamos que nosso sonho não era exatamente um apartamento novo, com um condomínio completo e todas aquelas coisas que nos enchem os olhos, não. Desejávamos apenas morar num apartamento bem arrumado e equipado. Então, meus amigos, vamos encarar uma grande reforma.