#0047 Por que você não suporta a ceia de Natal com seus parentes?

E te adianto, não é porque eles votaram no Lula ou no Bolsonaro.

Todos os parentes são iguais. Mas família, esta é única. Parentes são todos aqueles que carregam o seu sangue, mas não conhecem sua alma. Seus familiares podem ou não carregar o seu sangue, eles nutrem afeto por você. Quando você sentiu medo, foi no calor de seus colos que você se sentiu acolhido. Muitos de nossos familiares são nossos amigos, mas também existem alguns parentes que podemos chamar de família.

Mas para que possamos construir uma família, precisamos de tempo e ação. O sangue do meu sangue não me garante nenhum afeto. O sangue do meu sangue não me deve nada. Existem mais de 11 milhões de mães solo no Brasil, e não precisa ser nenhum gênio para saber que um pai ausente é simplesmente um parente. Todavia, não são somente os pais e aquele tio, que você só encontra nos natais e nos velórios, e você nem se lembra direito o nome dele. E os filhos deles, que são primos tão distantes que é como se nunca nem tivessem existido. Claro que vai existir uma comparação, toda família tem um primo rico, marginal, não padrão e padrão. Comparações essas que só servem para tentar diminuir o que você é. Te pergunto: qual o tempo que vocês tiveram juntos? Qual a ação que eles fizeram para construir um afeto no seu coração?

Imagine um mundo em que o amor não é construído; que não exige cuidado e sacrifício. Tudo seria mais simples, não é? Nós então poderíamos sentir carinho e amor por aqueles fantasmas, que quando perguntam falam: e as namoradinhas? E os concursos? E a faculdade? E eles não tem um tempo para olhar suas redes sociais, mandar uma mensagem, saber como você está? Não. Nesta situação você é apenas um objeto. Um objeto.

Ainda assim, você também possui sua responsabilidade. Você conhece os sonhos do seu tio? Acha mesmo que ele gostaria de estar tentando puxar assunto com todo o repertório que possui? O tio bolsonarista? O tio do pavê? Você realmente acredita que ele sentiria prazer ao receber chumbo num campo de fuzilamento? Você não acha que ele apenas reproduz algo que considera necessário para um mundo melhor? As coisas são construídas, ou só são quando a narrativa te favorece? Uma relação pressupõe no mínimo duas pessoas, logo a distância entre vocês pode ser percorrida por ambos os lados. Então, de quem então é a obrigação? O primeiro passo? Meu dever é tentar trazer algumas perguntas e não respostas, mas já parou para pensar tudo o que vocês têm são esses natais e que em breve acabou? Acabou. Ambos morrerão e nenhum conhece além do outro.

Quem deve dar o primeiro passo? É uma pergunta que não me atrevo a responder. Existe uma linha muito tênue entre você dar o primeiro passo e você ser um trouxa tentando costurar uma relação que não existe. De toda a forma, esta não é uma questão que envolve suas percepções, o que de fato você sente acerca de tal relação, pois há vezes que ser uma pessoa trouxa é o único caminho que vai te trazer uma paz anterior. Mais uma vez trago perguntas e não respostas.

Quando penso em questões tão complicadas, lembro que posso contar nos dedos as pessoas que de fato me conhecem. Ainda existem aquelas que possuem o meu afeto, mas também não me conhecem. Se nem eu sei exatamente os motivos que me levam a tomar minhas decisões, eu também me conheço? Em certa medida, temos a finitude de nossas vidas e as atitudes para tentar montar o quebra-cabeça do que nós somos. Mas ainda assim, tudo o que temos é a história do que somos, não de fato o que somos. Quando olhamos para isso, é possível vermos que qualquer tentativa de nos definir tem como consequência a transformação de nosso ser em um simples objetivo definido. Por mais que a história de nossas escolhas contenha peças finitas, o arranjo delas é algo infinito. Reduzir o infinito é reduzir um ser a um objeto. Então, até mesmo os meus afetos familiares mais íntimos só podem ver uma pequena fração de tudo o que sou.

Se até mesmo nossos afetos mais íntimos não nos conhecem, de verdade, então por que nossos parentes distantes, mesmo sem nos conhecer, geram então em nós uma repulsa?

Eles não pertencem ao nosso grupo. Nós, seres humanos, temos uma necessidade de pertencimento. É fácil observarmos o motivo de pertencermos, nós precisamos de grupos para sobrevivermos. Com a globalização nem mesmo um país inteiro consegue se manter sozinho, necessitando de insumos de outros países, formando uma verdadeira cadeia de suplementos, quem dirá nós que sozinhos morreríamos sem mesmo saber pedir por comida. Então é algo muito natural que o grupo seja como uma entidade para todos nós.

Mas seria uma completa ilusão acreditarmos que formaríamos um grupo grande, coeso e uniforme. Seria talvez quase tolo. Durante muito tempo, o grupo que regia todas as regras detinha todo o poder, esse era o grupo dos homens. Para descrever todos os grupos, seria necessário um verdadeiro tratado sobre a existência humana, e, definitivamente, não tenho pretensão e nem qualificação para tamanha ousadia, então irei parar por aqui. Basta entendermos que, ao pertencer a um grupo, nós nos apaixonamos por ele. Paixão é um termo adequado, segundo o dicionário, paixão é também “Disposição contrária ou favorável a alguma coisa, que cega e impede a razão; fanatismo: Há certas religiões que desenvolvem nos seus seguidores uma enorme paixão.” Tive uma professora que costumava dizer que paixão está mais para a doença que para o amor. Enfim, nós nos apaixonamos pelo nosso grupo, ao ponto de dizermos que todos os outros não fazem parte do nosso grupo porque não estudaram e, por isso, não têm a capacidade de ver a verdade que apenas o nosso grupo vê.

Obviamente, nosso grupo é o único que é o certo, se não fosse assim, você nem participaria do seu próprio grupo. Os outros grupos são os vilões, logo o seu tio é um vilão, ele representa o mal. Esquecemos que, mesmo numa estrutura patriarcal capitalista, os privilégios que os homens recebem não anulam o sofrimento que a estrutura causa a eles. Não precisa ir longe: 90,2% das mortes violentas foram sofridas por homens (dados de 2024), sendo a maior parte de homens pardos e negros. Mas vamos voltar aos grupos: o outro grupo, então, não compartilha a mesma visão de mundo que a nossa; eles, portanto, não são dignos de debate. São apenas violentos, nem sequer são seres humanos.

Se você tivesse a curiosidade de conversar com alguém de direita e conseguisse ouvir, provavelmente se surpreenderia, ou não, depende com quem você conversará. Existe uma superficialidade dentro da conversa, mas quando nós conseguimos avançar um pouco, entra dentro de algumas questões, descobrimos mais coisas em comum que diferenças, mas para isso é preciso conversar como se você tivesse algo a aprender com a pessoa, caso contrário você só vai confirmar suas crenças, reproduzindo a objetificação daquela pessoa, desconsiderando a existência dela.

Os outros também acham que vivemos num sistema injusto. Detestam também que uma pequena elite controle quase tudo. Mas a conclusão deles é completamente oposta à sua. Para eles, a solução não é darmos o poder ao proletariado, longe disso. Esse é o maior temor deles. Eles acreditam, sim, acreditam, que o patrão e o mercado vão ajustar as injustiças, magicamente. Dizem que o problema do Brasil não é ocasionado por anos e mais anos de exploração e escravização de seres humanos com a concentração dos recursos na mão de minorias, não. O problema é que existe um Estado muito grande, que custa caro e sufoca os pequenos empreendedores, que são eles que fazem o Brasil ser uma potência. Já você acredita que, ao acabar com a desigualdade social e fornecer bem-estar social, os problemas do Brasil desapareceriam. Essa é a missão da Caixa, mas te pergunto: você usa Caixa ou Nubank? Talvez você argumente que a Caixa sofre com um sucateamento proposital, que o Estado, na verdade, não foi controlado por um governo de esquerda nos últimos 19 anos, argumentando que o poder do executivo concentra-se com o legislativo, ou seja, o centrão. Mesmo que o Nubank tenha sido criado por duas pessoas e atualmente tenha 8 mil empregados, contra 88 mil diretos da Caixa, mais 230 mil de pessoas prestando serviço por meio de lotéricas; e, por mais contra intuitivo que seja, ambos os bancos investem valores semelhantes em tecnologia da informação (você pode obter essa informação lendo o balanço do Nubank e lendo os editais das licitações da Caixa, ambas as empresas têm seus balanços públicos). E, claro, o outro grupo vai dizer que o setor público é sempre ruim, e que pra melhorar basta privatizar, mas será mesmo? Qual a resposta? Qual a solução? Será que não estamos apenas olhando a superfície de algo infinitamente mais profundo? Como você já sabe, meu dever é trazer questionamentos e não respostas. Eu não tenho insumo e nem capital intelectual para conseguir descrever os motivos do mundo ser como é, apenas observo o mundo e tento me adaptar.

Então, o problema é simplesmente o outro grupo? Isso é um espectro. Há momentos em que você estará tão fechado com o seu grupo que qualquer um que é divergente por si só já é digno de ser morto. Por exemplo, como podemos lidar com pessoas que são fascistas, supremacistas, e cuja existência coloca a nossa existência em risco? É um paradoxo, pois, se formos gentis com eles, iremos desaparecer. Então, qual é a solução? Mais uma vez, apenas me reservo o direito de questionar, trazendo perguntas. Arrisco-me a dizer, baseado no Naruto, que a solução não é a violência. Existe a chance de você ser um radical que já pensou que quem discorda de você merece a morte? E não quem realmente comete crimes? Se você é um radical, com certeza, eu não sou pra você.

Baseado em minha experiência pessoal, vejo que os radicais são aqueles que fazem o trabalho sujo do grupo. São eles que carregam duas réguas, uma mede e critica ferozmente a doutrina do outro grupo, com a outra, ignora a realidade para confirmar as próprias crenças. O próprio grupo é digno de confiança e se torna incapaz de perceber que são exatamente aquilo que tanto criticam. De repente, todos os problemas que citamos perdem espaço para brigas de comentários nas redes sociais.

Meu parente mais distante é aquele que cumpre todos os preceitos, se aproxima de minhas crenças, tem uma visão de mundo então parecida com a minha. Protesta quando precisa protestar, e eu poderia dizer que é do mesmo grupo que eu? Sim. Mas eu não suporto conviver com esse meu parente, ele é estúpido. Meu melhor amigo, que também carrega tais crenças, é alguém que eu poderia passar horas e mais horas conversando, trocando experiências, vivendo. Mas por ele eu nutro afeto e carinho. Então qual a diferença? Além da idade, enquanto um é da geração Z, o outro de uma anterior a minha, meu parente não me respeita, não me escuta, não me conhece e não pratica o próprio discurso, ele é vazio.

Meu parente é do meu grupo, mas ele é incapaz de ver que o caráter dele é formado por todos os adjetivos que ele adora publicar em críticas nas redes sociais. Ele não consegue perceber que produz uma simplicidade tóxica do nosso grupo. Acredita que os outros são burros por não verem o mundo distorcido como ele vê. E o que torna impossível o convívio é o seu ar de superioridade, sem perceber que age como um robô, será que algum dia ele conseguiu questionar a si e as suas próprias crenças?

Portanto, existem robôs por diversos lados. E a falta de humildade que carregam, humildade no sentido de serem incapazes de aprender com pessoas do outro grupo, tornam elas pessoas insuportáveis, que nós carinhosamente chamamos de personalidade difícil. Mas não. São pessoas estúpidas que, na primeira oportunidade, descartariam sua existência como se jogassem um objeto quebrado no lixo. Se eu pudesse te dar um conselho, caro leitor, fuja desses parasitas.

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