Após ler esse livro, fiquei uma semana com um aperto no peito. Para piorar, nesse mesmo mais um caso de violência doméstica, desta vez o agressor foi um líder de “masculinidade”.
Recentemente, li o livro da Flávia e ele fez exatamente isso comigo. Sem medo de errar, digo que é a melhor literatura contemporânea que já passou pelos meus olhos. Mas o que define um livro excelente? Eu sei, classificar arte é um terreno pantanoso. Mas se eu disser apenas ‘gostei muito’, você vai fechar essa aba e voltar para o Instagram. Preciso te mostrar por que esse livro te pegaria pela garganta. Para não ficar só na minha opinião de leitor apaixonado, fui buscar ajuda nos gigantes.
Quando pensamos em teoria da literatura ocidental, podemos dizer que os primeiros que tentaram entender foram Platão e Aristóteles. Platão, em sua obra “A República”, esmiúça o que definiria (segundo seus critérios) como uma obra excelente; para ele, está relacionado com o propósito educativo, portanto, uma obra que não agregasse nada, que não falasse do que eles consideravam como bons costumes, era uma obra inferior. Já Aristóteles, no seu livro “A Poética”, traz algumas outras definições de que uma obra pode ser analisada e pode sim trazer algo de perfeito dentro dela mesma. Você deve lembrar de que para Platão existia o mundo das ideias, e as obras materiais seriam julgadas por estarem próximas ou distantes dessa perfeição. Aristóteles tenta definir essa perfeição trazendo conceitos interessantes na análise, como o de mimesis (imitação). Ele começa definindo então o que seria a poética, que não seria como a história que contaria os fatos; não, a poética seria então aquilo que poderia ser, é o tal do “e se”.
É importante também lembrarmos que esses autores viviam numa época em que não existia o conceito de literatura como conhecemos hoje. A ideia de literatura como tal é muito recente. As pessoas não eram alfabetizadas, não existia democratização de conhecimento, e muito menos acesso a livros, não existia literatura como conhecemos hoje. O teatro era forte, era como a Netflix hoje. Desde Aristóteles há um peso ao trágico, que em sua definição seria a representação do caráter dos homens superiores. Então, como você vai se lembrar da história de Édipo Rei, o homem que matou o pai e se casou com a mãe, é uma tragédia anunciada que não tinha como não ser dessa forma. E Édipo era um nobre, então as melhores obras nesse sentido eram histórias dos homens nobres de sua época.
Mas será que existe mesmo algo de belo, algo de perfeito numa obra, e que apenas uma obra é responsável por ser perfeita? Não me parece isso, pois mesmo na minha experiência de vida há leitoras e leitoras, mesmo do mesmo livro. Há momentos em que tenho uma perfeita experiência e vejo o sublime e belo, e há outros em que não, mesmo lendo a mesma obra. Isso nos parece tão reconfortante, já que a maioria das obras são reflexos da sociedade que a aprecia. Só que isso não me satisfaz também, eu leio algumas obras e vejo algo de diferente, e eu leio mais uma vez, e sei que existe algo, algo que é difícil. Então eu talvez diga que existiria um meio termo entre a beleza que está na obra e também no observador.
Neste ponto, o escritor e professor Ariano Suassuna, em sua “Iniciação à Estética”, nos oferece um caminho. Ele argumenta que existem essências estéticas, como o Trágico, o Cômico, o Sublime, que são categorias objetivas, presentes na própria obra de arte. A obra possui, em si, qualidades que a definem. No entanto, a percepção e o sentimento dessa beleza dependem da experiência subjetiva de quem a contempla. Assim, a obra de arte é um ponto de encontro: ela carrega uma beleza objetiva em sua estrutura, que por sua vez ilumina e é iluminada pela subjetividade do leitor. Por isso eu diria que a obra da Flávia tem elementos que sabemos que são, digamos, universais e podemos apreciar a sua beleza. Ao mesmo tempo é uma obra que conversa diretamente com a minha subjetividade, mesmo eu sendo homem e a obra sendo o relato de uma viagem de duas garotas. Mas esse é um dos poderes da Literatura que nos faz viajar.
A própria autora do livro o define como uma tragédia moderna. Mas antes de analisarmos a obra, o que é uma tragédia clássica na perspectiva de Aristóteles? Para ele, a tragédia é a imitação (mimesis) de uma ação de caráter elevado, completa, que, através da representação de atores e não da narração, suscita a piedade e o terror, levando à catarse, ou seja, à purificação dessas emoções. Segundo Ariano Suassuna, o “Trágico” é uma dessas essências estéticas, válida para todos os tempos, presente na obra de arte “Tragédia”. E o protagonista da história, também não é um homem comum, é um herói, tem um caráter excepcional, uma “alma grande”. Ao mesmo tempo, não é um deus perfeito, nem um vilão, é um meio termo, como por exemplo o Édipo. E por fim, temos o elemento de um “erro trágico” (hamartia), que é uma falha de julgamento ou ignorância que desencadeia uma catástrofe.
É importante fazer uma observação: a teoria sempre vem depois da obra. Então, quando Aristóteles propôs esses pontos, ele tinha feito a análise de todos os livros de sua época. Neste sentido eu diria que a reconstrução da tragédia proposta por Flávia foi excepcional. Nós não temos mais a ideia daquele herói representante de todos; ao contrário, temos a representação de pessoas comuns, Alice e Bárbara. Alice é rica. Bárbara é pobre. São duas classes sociais sendo representadas que, de forma moderna, são sim heroínas de suas classes.
Aqui, podemos adaptar a ideia de “homens superiores” de Aristóteles. Não se trata mais da representação de nobres, mas da representação do que acreditamos. Quando uma obra consegue mostrar o que acreditamos de verdade, com toda a nossa complexidade e contradições, essa é uma representação superior. É difícil uma representação genuína, pois vivemos numa sociedade que julga o tempo todo, e você sempre irá desagradar alguém e algum grupo. A coragem de uma obra está em buscar essa verdade, mesmo que incômoda.
Alice e Bárbara representam dois universos distintos: uma é rica, a outra, pobre. De maneira contemporânea, ambas são heroínas de suas respectivas classes sociais. Bárbara, cheia de atitude e determinação, conquista uma bolsa para uma faculdade prestigiada, onde conhece Alice, herdeira de um mundo privilegiado.
A primeira cena já anuncia a tragédia. Durante o trote universitário, ambas são humilhadas por veteranos. Quando Bárbara é forçada a ficar de quatro para desvendar um enigma sobre cinema, Alice vê a oportunidade de salvá-la, sussurrando a resposta em seu ouvido. Esse momento revela o desejo profundo de redenção da protagonista – ela carrega a culpa de ser rica. Como não se sentir culpado em um mundo em que existe uma desigualdade tão extrema?
A vida de Alice é monótona. Um namorado medíocre, nenhuma emoção verdadeira. Ela busca algo diferente, uma aventura? Sentir-se especial, não por seu berço rico, mas por suas escolhas. Surge então o incidente incitante da história: Alice planeja uma viagem ao Camboja e à Tailândia, sem luxos, para conhecer o outro lado do mundo. Convida Bárbara e se oferece para pagar tudo.
O livro nos dá pistas de que algo acontecerá, ao mesmo tempo que oferece esperança de um desfecho menos trágico. Quando chegam ao destino, sozinhas, são levadas em veículos precários até uma pousada afastada do centro, repleta de homens trabalhando. Sentem medo, mas estão cansadas demais para procurar outro lugar. Na recepção deserta, apenas um homem confirma a reserva. Elas tentam dizer que houve engano, mas aqui vemos novamente a falha trágica de Alice representada por seu desejo de redenção, de se livrar da culpa de ser uma menina rica da zona sul carioca. Ela quer acreditar no melhor das pessoas e cai na conversa de Arum, que se desculpa, dizendo que estão em obras, que o Booking enviou informações erradas e que esperavam a chegada delas na semana seguinte. Alice acredita.
A narrativa se desenvolve para que nos identifiquemos com as personagens. Alice perde o celular ao ajudar uma menina, acreditando em sua inocência. As duas acabam em uma pizzaria onde homens as olham como objetos sexuais, causando desconforto. Saem rapidamente.
Finalmente chegam à Tailândia, e a falha trágica de Bárbara é revelada. Ela tem uma necessidade patológica de ser amada e desejada por homens, submetendo-se a qualquer situação por eles. A tragédia se anuncia e intensifica. O leitor já deve imaginar o que está por vir.
No resort tailandês, são surpreendidas negativamente pelo estabelecimento ser muçulmano e não vender bebidas alcoólicas. As ações se intensificam para chegar ao clímax. Bárbara aprofunda seu desejo de ser desejada, e Alice reforça sua necessidade de ser salvadora, de se redimir pela culpa de ser rica. Ambas são abordadas por um homem sempre ao telefone. Sem desconfiar, por conta de suas falhas trágicas, são levadas a uma festa, usam drogas e se relacionam com ele. No final, acontece a desgraça imaginável, mas previsível. As duas finalmente se tornam iguais na submissão aos homens.
É uma tragédia – algo ruim precisa acontecer, e nada poderia ser pior hoje que a violência contra as mulheres. O livro, embora fale com as mulheres, ensina a nós, homens, sobre nosso lugar de privilégio. Quando saio às dez da noite, sozinho, meu único medo é ser assaltado. As mulheres não têm esse “luxo” – para elas, o medo é sempre pior.
Apesar das tragédias que retrata, não considero o livro pessimista – ele expõe fielmente a realidade da nossa sociedade. Esta semana, a vida imitou a arte da forma mais brutal possível: um “coach de masculinidade”, ícone de movimentos que pregam a suposta superioridade viril e a submissão feminina, foi preso por agressão e tentativa de estupro contra a própria companheira. Esse episódio não é uma exceção, mas a confirmação da estrutura que a obra de Flávia denuncia. Um mundo em que se violentam as mulheres sistematicamente, transformando a intimidade — que deveria ser refúgio — em cenário de terror. A mentalidade Red Pill, que pune o feminino na vida real, é a mesma força invisível que arrasta as personagens do livro ao abismo, provando que o ódio à autonomia feminina não é apenas recurso narrativo, mas tragédia cotidiana e palpável.
Isso não significa que devamos permanecer assim ou que estejamos fadados a esse destino – precisamos mudar. Mas essa é a realidade atual, e como lidamos com ela? O que podemos fazer? Como combater efetivamente as desigualdades e a violência contra a mulher? Confesso que é muito mais fácil culpar o sistema e dizer que é um machismo estrutural e que é assim mesmo, e não questionar meu chefe quando ele divide as tarefas e deixar a parte de secretariado para as mulheres, ou quando minha esposa, mesmo cansada nota o lixo fedendo que eu deveria ter notado quando cheguei em casa e não notei, ou ficar calada quando a objetificação das mulheres bate na sua cara. Ler esse livro me fez pensar que não basta não ser o monstro. Às vezes, o silêncio é a forma mais covarde de ser cúmplice.
Na minha análise e experiência de leitura, este livro alcançou excelência literária. Fechei o livro com raiva. Raiva da Flávia por me obrigar a enxergar o que finjo não ver todo santo dia na rua. Raiva de mim por nunca ter escrito nada com essa honestidade brutal.

Deixe um comentário