#0045 Três Homens

Conto vencedor do Talentos Fenal 2016 do Distrito Federal.

03:21.
Bondade, Honório e Rodrigo eram três homens diferentes. Enquanto, Bondade escondia, com a corcunda, o corpo magro e pequeno, a pele negra, o cabelo crespo; Honório destacava-se com sua musculatura, honestidade e beleza física (cabelos lisos, pele branca e lisa, olhos verdes); já Rodrigo permanecia na inércia, este apenas um bom espelho poderia lhe narrar.
5:00.
Bondade, um estagiário, escutou o celular despertar. Cansado. Parecia que tinha acabado de dormir. Mas não existia outra escolha, era preciso acordar naquele horário, pois não poderia chegar atrasado, carecia de pegar o primeiro ônibus. Vagarosamente, foi até o banheiro. Iria despertar. Não haveria como não acordar, no meio da crise, para economizar luz, o chuveiro não aquecia. O sono, o cansaço, as pálpebras querendo fechar-se, em que lugar ele iria arrumar forças para lutar? Quando sentiu a água em contato com o corpo, a 10° C, achou que iria morrer… não, era só mais um dia como outro qualquer.
Entre 5h e 5:30 da manhã, as paradas ficavam lotadas. Agitado. Entrou no ônibus. Estava sendo levado pelo fluxo de pessoas. Tirou o livro da mochila. Todos os dias era essa mesma batalha, todos os dias. Mas nem tudo estava perdido, durante as seis horas, que passava dentro do ônibus, estudava. De alguma maneira sabia que somente pelo estudo conseguiria romper as barreiras da realidade que o cercava.

“IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (…)”.

Olhou para a quantidade de gente naquele ônibus, a ironia de seu riso interno quase permitiu que uma lágrima brotasse. A literatura da Constituição Federal de 1988 é algo esteticamente muito lindo, seus olhos brilhavam. Um baque e um barulho forte de pneu cantando, carro desalinhando, pessoas caindo. Mas, felizmente, o motorista recuperou o controle do ônibus e conseguiu estacionar.
Todos, como porcos, foram convidados a sair. Mais uma vez chegaria atrasado. Olhou o estrago, era impossível continuar. Olhou para o buraco e sentiu raiva. Milhares de carros, e essa maldita classe não se organizava para reivindicar um asfalto descente?
As lembranças do seu chefe começavam a atormentá-lo. Lembrava-se da última vez que este o ensinou, da pior forma possível, que o atraso não tem perdão. Outro ônibus. Teria a chance de não chegar atrasado.
Não parou.
Motorista, filho da puta, teria até a 14° geração da sua família amaldiçoada para todo o sempre. Um ônibus parou. Parecia um milagre, pois não estava tão lotado. Vermelho era a cor destinada às cadeiras para os idosos, gestantes e deficientes físicos. Entretanto, um garoto, quase que da mesma idade de Bondade, dormia numa delas. Indignou-se. Ao seu lado um senhor muito idoso fazia força para manter-se de pé, enquanto aquele garoto… aquele garoto…
Calou-se.

7:00
Honório acordou, estava descansado. Fazia tempo que não descansava tanto. Suas estratégias finalmente deram resultado, e não qualquer resultado: estava em 1° lugar. Sua agência sozinha era responsável por 50% do resultado da Superintendência de vinculação. Sozinho fez o que as outras cinquenta e cinco agências não conseguiram fazer. Era um resultado incrível mesmo.
Via Veneto, Brookfield, Cia do Terno, Colombo e Garbo, qual marca de terno iria usar hoje? Resolveu por Brookfield. Afinal era o de qualidade mais incrível, ceda francesa, nada melhor para aquela ocasião. Hoje iria apresentar os seus resultados, o seu mérito, a sua inovação!
Como era mesmo o nome: Maria? Ana? Francisca? Não se recordava, mas também, não há importância para este nome nesta narrativa. Sua empregada doméstica já havia chegado, o café da manhã estava servido. Ele limitou-se a ligar a TV. As notícias seguiam seu ciclo natural. Um enorme engarrafamento causado por uma batida, muita chuva. Um bandido preso? Espera! não qualquer bandido, aqui vale o artigo determinante, finalmente o líder do Partido dos Tolos caíra. O povo não iria mais olhar para a sua presidenta como mãe, a crise estava ai diante dos olhos de todos, apenas os cegos não conseguiam enxergar.
A crise, a corrupção, o fascismo era tudo culpa deles. O bandido líder, ex-sindicalista, metalúrgico, que governou o país durante oito anos, não iria mais ter foro privilegiado e estava preso. Preso! Algemado, humilhado. Finalmente a suprema corte fez algo de útil para a nação. Se não fosse a crise causada por eles, o seu resultado seria 100%, entraria para a história da nação. Mas o seu país era isso, as pessoas eram lembradas por sua corrupção e não por seu mérito.
– Maria, o bandido foi preso! – ah! Como pudera esquecer o seu nome?
Notou um olhar de tristeza misturada a um choro abafado. Era uma reação que ele já esperava. Aquele bandido fez o que há tanto tempo os governantes faziam, a política do pão e do circo, dava alimento e espetáculo para o pobre. Pensava ser bem a realidade de Maria, que recebia além de seu salário o bolsa família, e sempre, observava-lhe olhando os sites de fofocas e programas inúteis em relação às novelas. Enfim, recebia o dinheiro do governo e a novela para não se revoltar e não pensar.
Entrou no seu Honda Civic. Ainda não havia quitado, mas com a promoção que viria com o resultado de sua brilhante estratégia, iria quitar o financiamento. Deu duas aceleradas no carro, gostava de escutar os roncos do motor em seus ouvidos.
Trânsito.
A gasolina estava muito barata, maldito governo populista, por conta disso, tanto trânsito. Quando se lembrava do governo suas entranhas se reviravam de tanto ódio. Gastava 27,5% dos seus rendimentos pagando impostos para o governo da bolsa disso, bolsa daquilo, bolsa pra um monte de vagabundo que não quer trabalhar. Hoje, quase não se encontram mais empregadas domésticas. Ele só não sabia que as bolsas representavam menos de 2% do orçamento.

7:30
Parado.
O ônibus não andava. Não conseguia parar de olhar para o relógio, já eram 7:30 e nada do ônibus andar. Por que justo hoje o trânsito estava daquele jeito? Não adiantou nada acordar na madrugada para ir à busca do primeiro ônibus, o trânsito não colaborava.
Caindo.
O velho ao seu lado caiu. Era nítido o cansaço em seus olhos, não conseguiu mais se conter, cutucou o jovem que aparentemente estava dormindo. O jovem despertou logo. Ficou envergonhado e deu lugar ao idoso. Num rápido diálogo soube que aquele senhor estava melhor, soube que poderia seguir.

7:45
Chegou à sede do banco. Tinha uma vaga. Uma vaga que ralou muito para conseguir, número 31, mérito. Passou numa universidade pública com os seus 17 anos, num concurso para o banco aos seus 19, formou-se aos 21 – em ciências econômicas. Colocou seu crachá e sentiu orgulho de ser ele mesmo.
Se tudo desse certo, tornar-se-ia o gestor mais jovem daquele banco. Na verdade iria mais longe, seria o gestor mais jovem da história daquele banco. Se não fosse um homem tão duro, tão bruto: lágrimas brotariam. Contudo, sentiu algo. Sentiu um orgulho que nunca antes havia experimentado.
Era como se todos já soubessem o que iria acontecer. Via o brilho nos olhos dos outros. Via a admiração deles, de todos eles. Então reunião a sua equipe. Chamou todos. Ele não estava lá. Mias uma vez atrasado. Oito horas e ele ainda não havia chegado. Uma das coisas que mais o irritavam era o atraso.

8:00
O ônibus finalmente encostou-se à rodoviária, ele não chegaria tão atrasado. Mas uma surpresa… aquele idoso o chamou, soube que ele necessitava de ajuda, passava muito mal. Enxergava que para o seu chefe não existiriam desculpas, nem nada do gênero. Muito sartriano, cada um é o responsável por seu destino. Ele recebera uma oportunidade e tudo foi muito claro em seu último atraso. Não existiam desculpas. Não haveria uma segunda chance.
Mas o que era um atraso quando colocado ao lado de uma vida? O que era um emprego ao lado de uma vida? A resposta depende da perspectiva. Aquele senhor não possuía mais filhos. Aquele senhor era responsabilidade do Estado, e ele, como um cidadão, tinha a obrigação de ajudá-lo. Foda-se o chefe. Foda-se a empresa. Se eles não fossem humanos para entender aquela situação, não fazia sentido continuar trabalhando para eles.

8:30
Dez, quinze, vinte, trinta minutos e nada do Bondade. Depois reclamavam que os negros estavam na pior situação da sociedade, que não ganhavam oportunidades, que existia preconceito, uma dívida histórica. Quanta bobagem. Deu a oportunidade ao garoto, e como todos os outros, o que ele fez? Cagou no pau! Quase todos os dias chegando atrasado, era necessário colocar um fim nisso.

03:32
Queria tanto terminar a história dos três homens. Vejo as histórias correrem por minhas mãos, entre meus dedos. A ideia era boa, o desfecho seria incrível para o conto, porém o tic-tac do relógio continuava a avançar. O cansaço chegava aos meus ombros junto à força eletrostática dos átomos.
Tic-tac.
Até que ponto eu poderia ir? Até onde eu poderia chegar? O sonho era forte, falta o tempo. Os dois homens vem e vão, eles precisavam serem narrados. Mas o tempo avança e não tenho forças para acompanha-lo. Estou cansado, amanhã tenho que trabalhar.
Tic-tac.
Lembro que o dia foi corrido, lembro-me das ideias muito vagamente. Os três homens. As três histórias se encadeando, a mesma discussão, os vários temas dentro da narrativa, o desfecho trágico. A mágica, fazer o leitor imaginar-se em um lado, enquanto na verdade estou dizendo coisas do outro. O peso. As pálpebras. As pálpebras iam se fechando. O sono. Os três homens. As três histórias. As entrelinhas.
Tic-tac.
A demissão. A promoção. O sono. A depressão. A ascensão. O peso. A reação. O executivo. Os três homens. O roubo. A política. O sono. A organização. O deputado. O banheiro. O tráfico. O deputado. O escovar dos dentes. O homicídio. O senado. As pálpebras. Os homicídios. O governador. O sono. A corrupção. A corrupção. Os três homens. A liderança. A aliança. Três histórias. A cadeia. A presidência. O antagonismo. Um homem. Dois homens. Um terceiro homem. O Bondade. O Honório. O Rodrigo. O estagiário. O patrão. O escritor. Um negro. Um branco. Um espelho.
03:33
Rodrigo, moreno, pálido, cheio de olheiras, cansado, que só conseguia pensar em sua cama:
Tic-tac.

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